Frente antifascista: ontem e hoje
junho 5, 2020 | Categoria: Notícia
Neste último mês de maio completou 75 anos a derrota da extrema direita na Europa, em 1945, por uma frente anti fascista que uniu as esquerdas e a liberal-democracia. Impensável até pouco tempo antes de ser costurada, essa aliança definiu o mundo contemporâneo e salvou o legado civilizacional humanista do Ocidente, ameaçado pela barbárie nazi fascista. Legado que voltou a periclitar atualmente, com a ressurgência da extrema direita. A História certamente não se repete. As diferentes épocas e conjunturas têm especificidades – mas também semelhanças. Lembramos, por isso, a frente anti fascista de 1942-1947 – como se viabilizou e quais suas consequências -, para tentar compreender as possibilidades hoje, no mundo e no Brasil, de aliança semelhante, insólita, mas crucial.
1930: DIFERENTES RESPOSTAS À CRISE DO LIBERALISMO
Na década de 1930 havia três grandes blocos políticos e ideológicos: a extrema direita nazi fascista, a liberal democracia e as esquerdas. Nenhum dos três homogêneo internamente, todos mediados por particularidades nacionais e matizes políticas, mas cimentados por um dado fundamental: cada um era inimigo ferrenho dos outros dois. Tal situação originou-se da imensa crise da civilização ocidental, do arranjo liberal burguês que essa civilização construiu a partir do século XVIII, o qual entrou em desequilíbrio profundo com a I Guerra e teve suas breves esperanças de recuperação na década de 1920 sepultadas com a crise econômica de 1929. Cada um dos três blocos constituiu-se dando respostas específicas a essa crise civilizacional.
A extrema direita, na década de 1920, ajudara a reação liberal conservadora aos movimentos de esquerda que varreram a Europa após o fim da I Guerra e já tomara o poder na Itália e em Portugal. Mas foi a crise de 1929 que gerou um movimento global, em inúmeros países, de tradições e trajetórias históricas as mais díspares, como resposta ao impasse da sociedade liberal-burguesa. Esse movimento foi o nazi-fascismo, e solução que apresentava era reformar a economia de mercado mantendo a desigualdade social e extirpando totalmente as eventuais ligações dessa economia com a democracia.
Para isso, lembrou Karl Polanyi, duas providências fundamentais: a) uma ofensiva ideológica de reeducação dos cidadãos, para que abdicassem de sua responsabilidade política individual em prol da coletividade, e aceitassem a ideia de se eliminar, literalmente inclusive, uma suposta “parte podre” dessa coletividade para sua imprescindível “regeneração”. Aos que relutassem em aceitar essa espécie de “religião política”, a coerção extrema, por meios estatais e paramilitares; b) a autarquização econômica nacional, dinamitando o sistema econômico internacional liberal-burguês. A Alemanha, particularmente, adotou esse objetivo, garantiu Polanyi. Ela alijou-se do sistema internacional de capital, mercadorias e moeda, a fim de reduzir a influência do mundo exterior sobre ela. Gastou suas reservas de ouro, destruiu seu crédito externo mediante o repúdio de suas obrigações, e até extinguiu o saldo favorável de sua balança comercial. Tal autarquização econômica só seria viável se a Alemanha encabeçasse um ultra imperialismo de exploração brutal de países e povos semiescravizados.
No bloco da liberal democracia, o New Deal estadunidense foi a resposta mais original e significativa. Não instituiu um Estado de Bem-Estar universal – ofereceu certa proteção social a camadas mais desfavorecidas e vulneráveis, especialmente os desempregados, excluindo o autoritário e racista universo rural. Concentrou-se na política econômica intervencionista, tentando reativar a combalida economia norte-americana pela indução de mecanismos de produção, de controle de preços, de incentivo à retomada e expansão da infraestrutura, etc. Foi significativo, porém, pela influência norte-americana, e original porque, mesmo parcial, essa política pública representou um ponto de inflexão na tradição política norte-americana, fortemente liberal e individualista, avessa a intervenção social do Estado.
O governo de Roosevelt lidou com a crise da economia de mercado de forma mais criativa que os liberais franceses ou ingleses, que atravessaram a década de 1930 aferrados à desacreditada ortodoxia laissez-faire, causadora da Guerra de 1914, da qual França e Inglaterra, embora vitoriosas, saíram exauridas – e por isso avessas e temerosas de novo conflito. Daí que, enquanto a guerra, na década de 1930 era o desejo e a razão de ser do nazi fascismo, era o pesadelo do liberalismo europeu. A patética política britânica de “apaziguamento”, por exemplo, significava ceder, na prática, à agressividade germânica enquanto, no discurso, alternava ameaças e gestos de conciliação. Os liberais conservadores retraíam-se frente ao avanço do nazi fascismo enquanto continuavam francamente hostis às esquerdas.
Estas, deram basicamente duas respostas à crise da sociedade liberal-burguesa: uma foi um imediato fracasso, mas forneceu elementos para o Welfare State mais tarde; outra foi bem sucedida a curto prazo, mas, ao fim, trágica para o legado socialista.
A resposta imediatamente fracassada foram as Frentes Populares, amplas alianças de várias tendências de esquerda, e, às vezes, de centro também, contra o nazi fascismo. Por um breve período, em 1936, a vitória eleitoral da Frente Popular em dois países grandes e contíguos como França e Espanha foi uma chance para a contenção da extrema direita. Fracassaram, porém, a manutenção da unidade interna e a promoção da solidariedade externa. Na França, o Partido Radical, de centro, fazia parte da coalizão, mas logo se alarmou com as leis sociais e a onda de manifestações e greves – muitas vezes espontâneas – que se seguiram à tomada do poder pela Frente Popular. Para manter os centristas na coalizão, o governo do socialista León Blum recuou nas políticas sociais, e, decepcionando a esquerda mundial, não interferiu na Guerra Civil espanhola ao lado dos republicanos, que combatiam a direita do general Franco, apoiada militarmente pelo nazi fascismo. Blum queria preservar a aliança com o Reino Unido (cujo governo conservador batia-se pela não intervenção no conflito espanhol), aliança tida como necessária frente ao expansionismo agressivo de Hitler. Além disso, temia que o próprio país, profundamente dividido, mergulhasse numa guerra civil como a da Espanha. A neutralidade, porém, custou o apoio dos comunistas franceses, que, seguindo a orientação de Moscou, abandonaram a Frente. Logo depois os centristas também saíram, e o governo da Frente Popular caiu, durou pouco mais de um ano.
Já a Frente Popular espanhola, embora também tivesse o apoio de expressivo movimento de base, organizando-se muitas vezes de forma espontânea, tinha contra si, além da direita nacional e internacional, a extrema fragmentação de sua coalizão, com a inimizade especialmente entre comunistas e anarquistas a minar as ações comuns. Sua derrota mergulhou a Espanha em quatro décadas de ditadura.
Para Geoff Eley, o receio de polarização política que motivou a neutralidade do governo da Frente Popular francesa na Guerra da Espanha foi um erro trágico. Além de uma catástrofe para a república espanhola, foi um revés para a esquerda, não só francesa, mas mundial, pois “deixou de levar em conta a dimensão internacional do moral da esquerda no período entre 1933 e 1936. Dilapidou o potencial de ação antifascista por meio da identificação combinada internacionalista e patriótica. O resultado teria sido a polarização na França – mas nos próprios termos da esquerda, e não pelo recuo constante e com a cessão permanente da vantagem retórica”.
Vantagem retórica, o comunismo soviético tentou não ceder. A outra resposta das esquerdas à crise do capitalismo liberal tomou a forma de uma segunda fase da revolução bolchevique, que abandonou completamente o iluminismo cultural e socialmente progressista dos anos iniciais do movimento. Chegou-se à conclusão de que o comunismo e a coletivização, especialmente da terra, tão importante numa nação ainda agrária, deveriam ser impostos rapidamente, a ferro e fogo, e para tanto instituiu-se um regime de terror. Implantando o comunismo à força, o gigante euro asiático, transformou-se, finalmente, assegurou Polanyi, numa alternativa real à economia capitalista, não era mais somente um lugar de agitação revolucionária contra o mundo capitalista – apresentava-se, agora, como representante de um sistema novo que poderia substituir a economia de mercado. Uma vitória a curto prazo. Mas a população russa, que já havia sangrado na I Guerra e na guerra da revolução, pagou caro para que sua nação se oferecesse como alternativa viável, efetiva, ao capitalismo[1]. E o socialismo pagou o terrível preço de ter sido corrompido, desfigurado de suas características e potencialidades democráticas originais.
Em 1939, a administração pública e as forças armadas russas encontravam-se extremamente vulneráveis, após os expurgos stalinistas. E uma aliança com os governos liberais contra o nazi fascismo, que ameaçava ambos, parecia longe de acontecer. As animosidades e desconfianças recíprocas eram enormes. Em vez disso, foram Stálin e Hitler, inimigos mortais, que assinaram, logo antes da II Guerra, um pacto recíproco de não-agressão, causando surpresa geral. Ambos precisavam ganhar tempo. Os soviéticos, para reconstruir o Estado e continuar desenvolvendo a economia. Os alemães, para atacar primeiro a França e a Inglaterra, a oeste, e, depois de dominá-las, voltar-se contra os povos eslavos no leste.
Os planos germânicos começaram dando certo com a fácil conquista da França e demais países da Europa Ocidental, mas esbarraram na resistência inglesa, auxiliada financeiramente pelos EUA. Mesmo assim, quando rompeu o pacto com os soviéticos e invadiu o país em junho de 1941, as perspectivas de Hitler eram favoráveis: se conseguisse dominar, numa guerra de extermínio, a URSS e a Europa Oriental, reduzindo os sobreviventes à escravidão, no mínimo uma paz vantajosa com a Inglaterra seria alcançada.
Somente aí, nesse momento, socialismo e liberal-democracia consolidaram uma aliança: quando tiveram certeza de que não havia opção além de uma luta de vida ou morte contra a barbárie nazi fascista. Somente aí houve perspectiva de salvar o legado humanista da civilização ocidental.
LIÇÕES HISTÓRICAS DA ALIANÇA ANTI FASCISTA
O que essa aliança que derrotou a extrema direita, mas logo depois foi desfeita, dando início à Guerra Fria, tem a nos ensinar hoje, em que, novamente, o crescimento da extrema direita é uma das respostas à crise de um capitalismo liberal, concentrador de renda? E em que nosso país é um dos mais ameaçados por esse ressurgir do fascismo. Listamos seis lições básicas.
Em primeiro lugar, a necessidade extrema é mãe das providências práticas, as quais muitas vezes atropelam dogmas e preconceitos sedimentados. Mas não há garantia de que essa necessidade seja percebida a tempo ou que as providências tomadas sejam efetivas – de forma mais direta: não estava “escrito nas estrelas” que a aliança entre a esquerda e a liberal-democracia seria formada e iria bater o nazi fascismo.
Em segundo lugar, recuar perante a extrema direita, esperando que ela modere ou desista do conflito é péssima estratégia. A razão de ser da extrema direita é o conflito, a agressão. As hesitações do governo de Blum em apoiar a esquerda espanhola, o vexaminoso “apaziguamento” inglês, contemporizando com os absurdos nazistas, só fizeram crescer o monstro. E o pacto nazi-soviético? Sem defender a ditadura stalinista e a corrupção do socialismo, há que se ressaltar que a URSS jamais teve ilusões de que os nazistas houvessem desistido da agressão. Sabia que era questão de tempo ser atacada, mas tempo era o que queria. E esperava que o tempo fosse maior, que França e Reino Unido resistissem mais a Hitler, que lhe impusessem maiores perdas – não contava, especialmente, com a queda tão fácil da França. Naquela situação absolutamente específica, portanto, o pacto com o arqui inimigo nazista foi, do ponto de vista dos interesses urgentes da URSS, compreensível[2]. Os governos liberais conservadores que se acovardaram perante Hitler não estavam na mesma situação, e esperavam, irracionalmente, que, cedendo ao fascismo, este se colocasse limites.
Terceiro, a fragmentação interna é fatal. Houve vários exemplos: a divisão incontornável das esquerdas espanholas durante a Guerra Civil, a falta de apoio do governo da Frente Popular francesa aos republicanos espanhóis na luta contra o fascismo, a incapacidade de social democratas e comunistas se unirem quando Hitler ascendeu ao poder. Mas houve exemplos no polo da extrema direita também. A união entre Japão e Alemanha deu-se no campo político-diplomático, não no campo bélico. Caso isso ocorresse, caso o Japão tivesse guerreado a URSS na Sibéria, como Hitler demandou constantemente, o desfecho do conflito poderia ser outro. O Japão, contudo, tinha suas próprias escolhas e condicionantes[3], e a aliança com o nazismo não foi plena.
Em quarto lugar, a falta de comunicação entre os movimentos populares de base e as lideranças de esquerda é sempre um problema sério. Na experiência das Frentes Populares de França e Espanha, a energia e a criatividade do povo irromperam na forma de greves e manifestações espontâneas, ocupações de fábricas, comitês de autogestão, festivais de rua, etc. Um mundo pulsante de iniciativas que logo se perderam, sem adquirir formas políticas ou alternativas de governo mais consistentes, sem fazer jus à força e representatividade que tinham, por causa da fragmentação política e do curto circuito entre o povo e lideranças não raro burocratizadas. Para que haja uma esquerda realmente democrática e politicamente forte e viável, a militância de base e as lideranças políticas são, ambas, fundamentais; seu diálogo – às vezes tenso, às vezes harmonioso – é veículo e garantia de vitalidade política. Também hoje temos, na base da sociedade, no Brasil e lá fora, um universo pulsante de movimentos, associações e organizações os mais diversos, uma imensa base social inquieta e insatisfeita. E as lideranças políticas, além do de cuidar do jogo institucional formal – eleições, conchavos políticos, burocracias partidárias -, não podem perder o contato com essa energia popular, sob o risco dela se dissipar na pulverização e na auto referência extrema.
Em quinto lugar, lembremos o lamento de Geoff Eley sobre o malogro das Frentes Populares em 1936-37: além da derrota em si, abateu o moral das esquerdas, cedeu “vantagem retórica” aos adversários. O fascismo deve ser combatido em todas as frentes, e a linguagem, a comunicação, é uma das mais importantes. Afinal, como afirmam Venício Lima e Juarez Guimarães, política e comunicação não são apenas dimensões “interligadas” – são constitutivas uma da outra. Ceder vantagem retórica significa abdicar das narrativas próprias, enfrentar o adversário nos termos dele, na “casa” dele, jogando o jogo dele – meio caminho andado para a derrota. A década de 1930 é geralmente vista como a década do fascismo. Sem dúvida este era forte. Mas a esquerda não era tão fraca, mobilizava parte significativa das sociedades – mas não conseguiu, nas palavras de Eley: “polarizar o jogo político em seus próprios termos”. No Brasil recente, uma esquerda moderada e reformista cedeu vantagem retórica aos adversários o tempo todo em que esteve no poder. Estamos todos colhendo os amargos frutos desse erro.
Finalmente, mas não menos importante, fica a lição de que, se o fascismo do entre guerras foi, como disse Polanyi, uma reação a uma situação objetiva, a da crise da economia de mercado e da civilização liberal-burguesa, o ressurgimento de elementos fascistas na conjuntura atual é consequencia, mais uma vez, de nova crise desse modelo, iniciada em 2008 e revigorada, agora, com a emergência do Coronavirus. Sem interferência do Estado, a tendência intrínseca do capitalismo é concentrar renda e aumentar exclusão e desigualdade social – quem duvidar, pode consultar Thomas Pikety, em sua monumental obra “O capital no século XXI”. Isso, e mais a mercantilização completa da vida que o capitalismo traz, aumenta o mal estar e a insatisfação gerais. Surgem então, os “salvadores da pátria”, aproveitadores que se mostram “antissistema”, com aspas bem merecidas, identificando o establishment com a esquerda e/ou com as pautas culturais progressistas – nunca com as oligarquias econômicas, é claro. Hitler e Mussolini nos anos 1930. Trump e Bolsonaro hoje.
Para evitar essas crises recorrentes da economia de mercado – e o extremismo de direita que elas nutrem – é preciso modificar tal economia. Eh preciso ativar o que Polanyi chamava de “instinto de auto proteção da sociedade”, que levou a diversas reações, reformas e contenções da mercantilização da vida trazida pelo capitalismo, mudando esse modo de vida infeliz e autofágico. É preciso, no mínimo, combater o domínio do capitalismo financeiro, retomando a hegemonia da economia real, da produção e do comércio, prevista pelo arranjo do Estado de Bem Estar pós II Guerra, que, com seus prós e contras, foi uma opção preferível à corrupção stalinista do socialismo e ao capitalismo sem peias, produtor de desigualdades, ambos carentes de substância democrática.
ESQUERDA E ALIANÇA ANTI FASCISTA: TRANSIGIR E NÃO TRANSIGIR
Vivemos no Brasil um momento em que a democracia e os próprios padrões mínimos de vida civilizada estão em grave perigo. Temos um chefe de governo fraudulentamente eleito – o impulsionamento maciço de mensagens nas redes sociais financiada por empresários, proibido pela lei eleitoral e a prisão casuística, forçada, de seu principal adversário, retirando-o da disputa. Esse chefe de governo, vendo minguar seu apoio por conta da condução criminosa da crise do Coronavirus e preocupado com as investigações sobre seu esquema criminoso de mentiras e achaques a adversários nas redes sociais, instiga seus seguidores a apoiar um golpe de Estado que sepulte de vez o que resta das instituições democráticas.
É urgente resistir à fascistização completa de nosso país. A lição da História é que a aliança entre as esquerdas e liberal democracia durante a II Guerra foi efetiva, mas não desfigurou qualquer dos dois campos. Terminada a necessidade de aliança, derrotado o monstro nazi fascista, cada um voltou a seu leito, a suas visões de mundo, seus princípios.
No Brasil, as esquerdas devem, em primeiro lugar, superar as muitas divergências internas. Depois, devido à situação crítica do país, devem se juntar a liberais e conservadores numa frente anti fascista. Sabendo em que transigir e em que não transigir. A transigência deve ser relevar momentaneamente o apoio explícito ou implícito que esses liberais conservadores deram à eleição Bolsonaro, à prisão de Lula, ao golpe contra Dilma. Deve-se pesar as consequencias últimas das escolhas, em vez de se agir movido a ressentimentos, por mais compreensíveis que sejam. A intransigência deve ser a de não formar alianças de forma subordinada, acrítica, de não abrir mão de seus valores, sobretudo do que as esquerdas têm de melhor: as políticas sociais de redução da desigualdade e aprofundamento da democracia. Aliar-se a liberais conservadores aderindo a todo seu projeto elitista, a pautas como a Reforma da Previdência defendida por Guedes, à instrumentalização patrimonialista do Estado em prol das elites – isso não deve ser feito. Os liberais conservadores quererão acordos desse tipo? Os sinais vindos desse campo têm sido dúbios. Talvez pensem ser possível anularem sozinhos a extrema direita, no máximo com a esquerda em papel coadjuvante. Mas talvez haja competência e visão suficientes para que ambos os polos, liberais conservadores e esquerda, tentem um verdadeiro pacto, negociado de igual para igual.
Obviamente, a conjuntura brasileira atual não é idêntica à conjuntura mundial da II Guerra. Mas há semelhanças, sobretudo na necessidade dramática de se derrotar o fascismo. Façamos tudo que estiver ao nosso alcance para isso.
Rubens Goyatá Campante – Pesquisador da Escola Judicial do TRT/MG e do Cerbras (Centro de Estudos Republicanos Brasileiros)
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[1] A coletivização das terras enfrentou resistência dos camponeses, a implantação abrupta do comunismo enfrentou resistência dos velhos bolcheviques, militantes do partido comunista, que, fiéis às lições de Karl Marx, não julgavam o país “maduro” para tanto (o comunismo, de acordo com a ortodoxia marxista, deveria se implantar na Europa ocidental industrializada), a regressão cultural enfrentou a resistência de intelectuais e camadas urbanas. Todas essas resistências foram dobradas por intensa repressão. A princípio, os chamados “expurgos de Stálin”, destinados a combater “inimigos do comunismo” e “agitadores liberais e fascistas” abateu-se sobre a população civil, camponeses, operários, militantes – os integrantes do Exército Vermelho ficaram de fora. Com a população civil posta de joelhos, entretanto, a perseguição voltou-se também contra as forças armadas, inclusive membros dos altos escalões. Calcula-se que, dos 75 mil oficiais do Exército e Marinha, de 1/3 a metade tenha sido condenada à morte por traição. O saldo geral foram cerca de 680 mil pessoas mortas e 3 milhões presas.
[2] Do ponto de vista, porém, das esquerdas mundiais e europeias, e particularmente, daquelas dos países que já estavam sob o tacão nazi fascista, o pacto foi desmobilizador e desconcertante. Como afirma Eley, não tanto por ele em si, mas pela forma como foi feito, com a URSS “ordenando” aos demais partidos comunistas que cessassem as hostilidades contra o nazi fascismo. Mais uma prova de que a corrupção do socialismo perpetrada pelo regime de Stalin ocorreu não só pela opressão que instaurou, mas pelo fato de sempre colocar os interesses da URSS absolutamente acima de quaisquer outros da esquerda mundial. Após a II Guerra, isso adquiriria feições trágicas, na relação imperialista da URSS com o Leste europeu.
[3] Japão e Rússia tinham um histórico de conflitos na costa russa do Oceano Pacífico e na região contígua da Sibéria – área de expansão russa, pouco habitada e com abundantes e estratégicos recursos naturais. Em 1905, a armada japonesa derrotara a marinha russa, na disputa pelo Pacífico. Em 1918, na esteira da reação internacional à revolução bolchevique, o Japão ocupara partes extremas da Sibéria, mas foram expulsos em 1922. Em 1937, o exército nipônico lançou-se sobre grande e cobiçada presa: a China, então decadente e convulsionada por sangrenta guerra civil entre os comunistas comandados por Mao Tse Tung e os nacionalistas do general Chiang Kai Chek. A aventura chinesa custou muito ao Japão. Custou a oposição ferrenha dos EUA, que também tinham interesses de hegemonia no Pacífico, e impuseram embargo comercial e financeiro aos nipônicos em meados de 1941 – o que contribuiu para o ataque japonês aos EUA em dezembro daquele ano. E cobrou expressivo e crescente esforço logístico e militar. Comunistas e nacionalistas chineses se uniram contra o agressor externo e sua dominação impiedosa. O jugo nipônico sobre a China nunca passou do controle de portos, vias de comunicação e algumas grandes cidades. Em 1938-1939, Japão e URSS se enfrentaram em uma série de batalhas na Sibéria, e as forças russas, mesmo debilitadas pelos expurgos stalinistas, impuseram seguidas derrotas aos japoneses, para absoluto espanto destes, tão orgulhosos, até então, de sua eficiência militar. Assim, em 1941, os japoneses tinham duas opções de expansão: tentar novamente sobre os russos na Sibéria ou mirar os impérios coloniais britânicos, franceses e holandeses do Sudeste da Ásia, de onde também poderiam obter petróleo, borracha e outras matérias primas essenciais. O esforço de guerra na China, a surpreendente derrota para os russos, o conflito com os EUA e a vulnerabilidade das potências europeias enfraquecidas pela agressão nazista, tudo isso fez os japoneses optarem pelo Sudeste da Ásia e por um pacto de não agressão com os soviéticos só rompido no último minuto da II Guerra – e pela URSS, que um dia antes da 2ª bomba atômica sobre o Japão, em agosto de 1945, declarou-lhe guerra. Stalin, assim, pôde transferir 4 milhões de soldados da frente asiática para a defesa contra a invasão alemã – imprescindível para a resistência inicial e posterior vitória soviética.
Fonte – Carta Maior
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