Porque as FAFEN`s não podem ser hibernadas sem autorização legislativa
Jailton Barbosa Matos Andrade
Resumo. Uma recente decisão monocrática no STF, nos autos da ADI 5624/DF, impede a transferência do controle acionário de empresas públicas e sociedades de economia mista à iniciativa privada. Os autores da ADI alegam que a Lei nº 13.303/2016, que dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, é inconstitucional porque permite a livre disposição do controle acionário de entidades governamentais sem aval legislativo e sem licitação. Este artigo apresenta as razões jurídicas para considerar que o fechamento ou a hibernação das Fábricas de Fertilizantes Nitrogenados da Petrobras, na interpretação da medida liminar deferida recentemente pelo STF, também necessita de autorização legislativa.
Palavras-chave: FAFEN. Petrobras. Hibernação. Autorização legislativa. Privatização
INTRODUÇÃO
Em 27/06/2018, o Ministro Ricardo Lewandowski concedeu medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5624/DF) ajuizada pela Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal - FENAEE e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro - CONTRAF/CUT em novembro de 2016, contra o texto integral da Lei 13.303/2016, que se propõe a regulamentar o art. 173, § 1º, da Constituição Federal, cuja redação foi alterada pela Emenda Constitucional 19, de 4 de junho de 1998.
Os requerentes argumentaram, em resumo, que a Lei nº 13.303/16, impacta um grande número de empresas estatais em todo o País e que, na esfera da União, serão afetadas pela lei cerca de 150 empresas estatais, atingindo mais de ½ milhão de empregados. Para outras esferas do Executivo, afirmaram que a lei estabelece “limitações e obrigações e restringindo a capacidade de gestão dos respectivos Poderes, em situação de clara ofensa à Constituição Federal”.
No final do ano de 2017, o Partido Comunista do Brasil também ajuizou uma ADI (5846 /DF) e em março/2018 o governador de Minas Gerais protocolou outra ADI (5.924/MG). Todas questionam a constitucionalidade da Lei 13.303/2016 e por esse motivo foram distribuídas por dependência ao Ministro Lewandowski.
O PCdoB argumenta que, tanto a Lei nº 13.303/2016 como o Decreto nº 9.188/2017, devem ser interpretados conforme a Constituição para que a venda de ações das sociedades de economia mista ou de suas subsidiárias ou controladas exijam prévia autorização legislativa sempre que se cuide de alienar o controle acionário e que não haja dispensa de licitação nesses casos como quer o referido Decreto.
Já o governador de Minas na ADI 5.924/MG impugna a primeira parte da Lei 13.303/2016 por considerar que ela fere a autonomia dos entes federativos pois cada estado-membro deve especificar os objetivos que justificaram constituição de certa empresa pública ou sociedade de economia mista, definir o porte de cada entidade, os critérios para alcance da eficiência necessária ao equacionamento dos custos operacionais, os sistemas internos de controle e monitoramento no contexto institucional da empresa e, por fim, a estrutura de governança.
Na decisão cautelar de Lewandowski, a tese defendida na ADI 5846 /DF (PCdoB) foi liminarmente concedida para:
conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 29, caput, XVIII, da Lei 13.303/2016, afirmando que a venda de ações de empresas públicas, sociedades de economia mista ou de suas subsidiárias ou controladas exige prévia autorização legislativa, sempre que se cuide de alienar o controle acionário, bem como que a dispensa de licitação só pode ser aplicada à venda de ações que não importem a perda de controle acionário de empresas públicas, sociedades de economia mista ou de suas subsidiárias ou controladas.
Em outras palavras, a decisão impede a privatização de empresas públicas e sociedades de economia mista sem autorização do Legislativo e que, havendo transferência do controle acionário, seja precedida de licitação.
1. A CRIAÇÃO E A EXTINÇÃO DE EMPRESAS PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA
É regra do art. 37, inciso XIX, Constituição Federal: somente por lei pode ser instituída a empresa pública, a sociedade de economia mista e a fundação.
Isto é assim porque a sociedade, por meio de suas representações legislativas, decide quais serviços devem ser prestados pelo Estado, assim como em qual atividade econômica o Estado deve intervir para produzir bens. A primeira empresa estatal brasileira foi o Banco do Brasil em 1808, seguido pela Caixa Econômica Federal (1861), Chesf (1942) e BNDES (1952). A Petrobras foi a sétima empresa estatal brasileira, instituída pela Lei nº 2004, de 3 de outubro de 1953.
Tanto as empresas públicas como as sociedades de economia mista são instrumentos de ação do Estado e compõem a Administração Pública Indireta. Não por outro motivo, o Decreto-Lei nº 200/67 estabelece que essas entidades estão vinculadas ao Ministério em cuja área de competência estiver enquadrada sua principal atividade (art. 4º, Parágrafo único) e são por ele supervisionadas (art. 19).
O art. 173 da Constituição Federal estabelece que “a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.”
Quando uma lei cria uma empresa pública ou sociedade de economia mista, portanto, ela o faz especificamente porque a entidade é necessária aos imperativos da segurança nacional ou a um determinado interesse coletivo relevante, já que a Constituição só permite nesses casos. O art. 37, XIX da CFestabelece que a lei criadora deve ser específica, ou seja, deve tratar exclusivamente da criação da entidade que prestará o serviço público ou intervirá no domínio econômico:
XIX - somente por lei específicapoderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação; (grifamos)
Apesar de não constar expressamente no texto constitucional, deve-se entender “criação” e “instituição” também como a transformação de uma empresa pública em sociedade de economia mista ou vice-versa, bem como a fusão, incorporação e a aquisição do controle societário de uma empresa privada. Em outras palavras, para que o Estado adquira o controle acionário de uma empresa privada por exemplo, é necessária uma lei autorizadora.
O Prof. Dr. Diogenes Gasparini alerta que “a Constituição paulista, nesse particular, foi mais providente, pois exige prévia autorização legislativa para a fusão, cisão, incorporação e extinção desse tipo de sociedade (art. 115, XXI)”[1].
Para o Prof. honoris causa, da mesma forma que a criação de uma sociedade de econômica mista ou empresa pública tem sua gênese na lei, deve a extinção ser precedida de autorização legislativa:
Quando à extinção das sociedades de economia mista, alerte-se que esta só poderá ocorrer se previamente autorizada por lei, qualquer que seja seu objeto: explorar certa atividade econômica ou prestar dado serviço público. Não podem, por conseguinte, extingui-las a Administração Pública, seus dirigentes ou a assembleia geral, ainda que convocada com esse objetivo.[2]
A extinção de uma empresa pública ou sociedade de economia mista deve ser compreendida em duas dimensões. A primeira como a extinção em sentido estrito, ou seja, a entidade deixa materialmente de prestar o serviço público ou de intervir no domínio econômico, fechando suas portas, demitindo ou transferindo seus empregados. A outra dimensão é a extinção formal, onde a entidade passa o controle societário à iniciativa privada ou se incorpora a outra entidade. Nessa acepção, a privatização (ou desestatização) é uma forma de extinção da entidade governamental (empresa pública ou sociedade de economia mista). Enquanto morre a entidade estatal, nasce no mesmo ato uma empresa privada.
Na decisão liminar proferida pelo Ministro Ricardo Lewandowski na ADI 5624/DF, fica patente a preocupação com a conformação constitucional das iniciativas legislativas quando à exploração da atividade econômica, não somente no seu inicio (criação) como também no seu fim (extinção):
[A] Carta de 1988 exige sempre a aquiescência do Poder Legislativo aos processos de criação de entidade governamental dessa espécie, ainda que tenha sido criada para explorar atividade econômica em sentido estrito.
Assim, ao que parece, nesse exame preambular da matéria,não poderia o Estado abrir mão da exploração de determinada atividade econômica, expressamente autorizada por lei, sem a necessária participação do seu órgão de representação popular, porque tal decisão não compete apenas ao Chefe do Poder Executivo.
Nessa esteira, leciona José dos Santos Carvalho Filho, com base na teoria da simetria, que “a extinção das empresas públicas e das sociedades de economia mista reclama lei autorizadora”, uma vez que “[...] o Poder Executivo, a que são normalmente vinculadas, não tem competência exclusiva para dar fim às entidades” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 30 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016, p. 527).[3](destacamos)
Estas linhas trazidas pelo Ministro em sua decisão se apoiam na tese defendida na ADI 5.846/DF apenso aos autos da ADI 5624/DF e analisadas em conjunto. Para o partido, autor da ADI:
[...] a criação de subsidiária de economia mista (art. 37, inciso XIX, Constituição Federal), bem como a participação em empresa privada, dependem de autorização legislativa (art. 37, XX, Constituição Federal). Em decorrência do princípio do paralelismo das formas, não há dúvida de que a desconstituição de sociedades de economia mista – e também das suas subsidiárias e controladas – exige prévia autorização legal. A reserva de lei em sentido formal prevista na Constituição para autorizar a criação de sociedades de economia mista (art. 37, XIX) e também de suas subsidiárias e controladas (art. 37, XX) é justificada pela necessidade de que o Poder Legislativo delibere sobre o atendimento dos requisitos que autorizam a intervenção do Estado no domínio econômico (imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo), nos termos do art. 173, caput, da Constituição Federal. Se o Estado, por meio de lei formal, entendeu ser caso de intervenção para atender aos imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, nos termos do art. 173, caput, da Constituição Federal, não poderia o Poder Executivo, por decisão exclusiva, decidir que a intervenção não se justifica. (destacamos)
A título de exemplo, vale lembrar que, em 1976, a Câmara Municipal de Salvador autorizou, por meio da Lei municipal nº 2860, a criação da RENURB - Companhia de Renovação Urbana de Salvador, sociedade de economia mista vinculada diretamente ao gabinete do então Prefeito Jorge Sobrinho. Em 1991 a Câmara Municipal entendeu não ser mais necessária a prestação daquele serviço público e aprovou a Lei Municipal nº 4343/91 autorizando o Prefeito Fernando José a extinguir a RENURB.
Como se vê, não pode o Executivo, sem autorização do legislativo, dispor da exploração de determinada atividade econômica que, por lei, foi tida como imperativo da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo e assim criada a respectiva entidade governamental. A análise da relevância na prestação do serviço ou fornecimento de bens cabe sempre ao legislativo, quer seja para a sua continuidade ou não. Deste modo, não sendo delegada ao Poder Executivo a iniciativa de criar ou extinguir entidade pública ou mista, tal usurpação é contrária à Constituição Federal.
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2. A PETROBRAS COMO SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA E A EXTINÇÃO DE SUAS UNIDADES OPERACIONAIS
A Petrobras foi criada pela Lei nº 2004/53. O Poder Legislativo entendeu que “a pesquisa, a lavra, a refinação, o comércio e o transporte do petróleo proveniente de poço ou de xisto – de seus derivados bem como de quaisquer atividades correlatas ou afins”[4] eram atividades econômicas que, pela relevância, deveriam ser prestadas pelo Estado brasileiro por meio de uma sociedade de economia mista nos termos do art. 5º, III, do Decreto-Lei nº 200/67.
Cada unidade da Petrobras é uma sociedade de economia mista em si já autorizada em lei, posto que presta uma determinada atividade econômica relevante, que deve ser entendida, não somente como o tipo de atividade prestada (pesquisa, refino, transporte, etc..), mas também pelo local da instalação, cuja relevância também se extrai.
Mire-se no exemplo da Transportadora Associada de Gás – TAG. Ativo da Petrobras, a TAG é proprietária e gestora de importante parcela dos ativos de transporte de gás natural do país, distribuídos entre as regiões Norte, Nordeste e Sudeste. É detentora, dentre outras, da Nova Transportadora do Nordeste S.A. – NTN e da Transportadora Urucu Manaus S.A. (TUM). As duas transportadoras têm idêntica atividade econômica: transportar gás natural. Entretanto, cada transportadora tem sua importância específica visto que disponibiliza o gás em demandas setoriais igualmente relevantes.
Nesse ponto é preciso salientar que o ato que pôs à venda em 04/04/17 o gasoduto Nova Transportadora do Sudeste (NTS), ativo da Petrobras, pelo valor de US$ 5,1 bilhões sem autorização legislativa é inconstitucional e, portanto, nulo.
Outro exemplo, e é o propósito específico deste artigo, é o das FAFEN`s da Bahia e de Sergipe. Apesar de ambas produzirem fertilizantes nitrogenados a partir do derivado do petróleo – o gás natural, cada uma tem sua relevância no local onde está instalada. Na Bahia, é indústria de base para a integração do Complexo Petroquímico de Camaçari bem como fomenta o desenvolvimento agropecuário do estado. Em Sergipe, serve ao fornecimento de produtos ao médio nordeste e desenvolve o próprio estado.
Ambas prestam a atividade correlata descrita no art. 6º da Lei nº 2004/53 que criou a Petrobras e são sociedades de economia mista.
Nessa acepção, da mesma forma que as refinarias, as fábricas de fertilizantes nitrogenados na Bahia e em Sergipe, pertencentes à Petrobras, necessitam de aval legislativo, não somente para a desestatização (transferência do controle acionário) como também para o fechamento, posto que, em todo caso, há extinção do ente estatal.
A deliberação sobre a relevância ou não do fornecimento dos bens que as fábricas produzem cabe ao Legislativo, não podendo o Presidente da República decretar a extinção porque, mais que ilegal, é ato inconstitucional. Ao assombro de qualquer razoabilidade, não poderia sequer o Presidente da Petrobras determinar a venda ou fechamento de quaisquer unidades da companhia, já que não representa o Poder Executivo.
E nem se diga que a hibernação não põe fim à sociedade de modo a não necessitar de autorização legislativa. Ainda que a unidade da Bahia (FAFEN-BA) tente, temporariamente, manter o fornecimento de amonia aos clientes baianos, a ureia fertilizante, ureia pecuária, ureia industrial e gás carbônico, todos derivados do gás natural, não serão mais fabricados, de modo que essas atividades econômicas, relevantes ao coletivo nacional, não serão mais prestadas. Trata-se, pois, de usurpação da competência legislativa.
Se, após 65 anos de existência, existem dúvidas quando à relevância das atividades prestadas pelas unidades da Petrobras, deve o Poder Legislativo ser instigado a analisar os caracteres de relevância ao interesse coletivo e à segurança nacional de cada atividade que deixará de ser localmente prestada e, a partir daí autorizar ou não sua extinção.
3. O RISCO NO TRATAMENTO DISTINTO PARA “PRIVATIZAÇÃO” E “FECHAMENTO” DE UNIDADES DA PETROBRAS
Situação não menos grave é a de interpretar que, para a transferência do controle acionário de certa unidade da Petrobras, seja necessária autorização legislativa, mas para o fechamento ou hibernação não.
Deve-se ter em mente que se a Petrobras, sendo sociedade de economia mista, presta relevante atividade econômica ao país, a transferência do controle acionário à iniciativa privada (privatização) é menos gravosa do que o fechamento, pois mantém o fornecimento de bens, ainda que sem o controle estatal.
Se para a privatização (extinção formal) de uma entidade governamental como a Petrobras ou de alguma de suas unidades, que mantém o fornecimento de bens, é imprescindível a autorização do Poder Legislativo sob pena de inconstitucionalidade, não é razoável que se possa permitir o fechamento ou hibernação (extinção material) dessas unidades sem o aval legislativo.
Nessas premissas está a perigosa conclusão de que, se confirmada a cautelar da ADI 5624/DF pelo plenário do STF para exigir autorização legislativa apenas para o caso de privatização, o judiciário estará transferindo ao Executivo e pior, ao Presidente da Petrobras a prerrogativa de fechar refinarias, fabricas de fertilizantes e outras unidades da Petrobras.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Resta claro que a decisão liminar proferida pelo Ministro do STF Ricardo Lewandowski na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5624/DF proíbe a privatização de empresas públicas e sociedades de economia mista por considerar que existe, neste caso, a extinção de entidade governamental e, em decorrência do princípio do paralelismo das formas, a extinção exige o mesmo formalismo que a criação: ser emanada da lei.
Se para privatização é necessário o aval do Congresso Nacional, mesmo considerando que existe neste caso a extinção formal de determinada empresa estatal, mantendo o fornecimento de bens ou a prestação de serviços por meio da iniciativa privada, não é menos certo que o fechamento dessa empresa, em si tratando de extinção material, é mais gravosa ao interesse público e necessita mais do que nunca de uma autorização legislativa por lei específica permitindo ao Executivo agir nesse sentido.
Portanto, a hibernação ou fechamento das Fábricas de Fertilizantes Nitrogenados da Petrobras (FAFEN`s) exige prévia autorização legislativa, posto que é quem tem a prerrogativa de avaliar se as atividades econômicas exploradas pelas fábricas deixaram de ser relevantes à segurança nacional ou ao interesse coletivo.
* Graduado em Direito pelas Faculdades Integradas da Bahia. Pós-Graduado pelo Juspodvim. Advogado. Diretor do SINDIPETRO BAHIA
[1]Gasparini, Diogenes. Direito Administrativo. 15. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 501
[2]Idem, pg. 503
[3]STF - ADI 5624/DF,disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI5624Liminar.pdf, pg. 23.
[4] Art. 6º da Lei nº 2004/53.